
Desde o início da pandemia que algumas vozes do pensamento actual foram partilhando textos e diários virtuais, com reflexões ou diagnósticos, acerca das alterações impostas pelo vírus. Entre elas, destacou-sea do filósofo italiano Franco “Bifo” Berardi, 71 anos, veterano do Maio de 68, importante figura do movimento operário italiano da década de 1970, que desde os anos 1990 tem reflectido, em inúmeras obras, sobre a relação entre psicopatologias, tecnologias da informação e capitalismo. Vive em Bolonha e é actualmente professor de teoria dos media na academia de belas-artes de Milão.Entre Fevereiro e Maio deste ano publicou na internet uma série de textos que acabaram por ser compilados num pequeno e excelente livro onde aborda o “vírus semiótico”, a fixação psicótica que prolifera hoje no corpo impaciente da humanidade global.
É essa obra, Crónicas da Psicodeflacção, que agora é lançada pela Tigre de Papel, depois da tradução portuguesa (de Nuno Leão e Ana Bigotte Vieira, também autores da introdução) ter sido originalmente encomendada para o programa digital do teatro do Bairro Alto, numa parceria com o jornal Punkto. Numa conversa por Zoom, logo de entrada, faz questão de dizer que não encara exactamente o livro “como um conjunto de reflexões sobre estes tempos de pandemia. É-o apenas até certo ponto. A minha intenção, pelo menos, não era essa. Não sou biólogo. É mais um conjunto de observaçõessobre aquilo que me parece ser a dificuldade contemporânea em respirar, seja literalmente ou metaforicamente, numa época onde se combina a precarização da vida, a falência dos regimes neoliberais e, sim, também a nova complexidade trazida pelo vírus. Há que contar o que parece inevitável do ponto de vista do entendimento, mas recordar que às vezes o imprevisto subverte os planos do inevitável.”
Segundo ele, a pandemia dever ser encarada como um contínuo, um intensificar de algo que vinha de trás, e não propriamente como corte ou ruptura. E o exemplo advém precisamente das questões que tem vindo a abordar há décadas – as mudanças de paradigma na nossa incapacidade em projectar o futuro, a hiperconectividade ou as relações sociais ou corporais cada vez mais virtuais – e que, agora, parecem mais centrais do que nunca. Deseja falar sobre o presente, mas não tem receitas em relação ao futuro, adverte. “A única certeza é que depois da quarentena se acumularão diversos cenários, alguns deles contraditórios. Tanto existe a hipótese de um cenário totalitário, sombrio e agressivo, como haver disposição para encetarmos uma mutação para uma disposição frugal e igualitária, com uma redistribuição mais conseguida da riqueza existente.”
É difícil projectar o cenário económico e social que iremos encontrar quando sairmos da quarentena, mas certamente que será algo muito diferente do que já vivemos. Isto apesar da perturbação actual estar apenas a expor a estagnação que já era visível na última década, mesmo com esforços de revitalização económica, ou com o fortalecimento de capital das grandes empresas digitais. Uma coisa é certa, segundo ele. “O poder já não está no Estado, enquanto organização de vontade colectiva, mas no capitalismo, na sua forma semiótica, psíquica, financeira. São as grandes empresas que dominam a actividade social e a mente humana.”
Segundo ele, a desaceleração económica não se deveu a uma crise conjuntural, mas foi resultado do esgotamento dos recursos do planeta e do aumento tecnológico da produtividade. “Agora a pandemia exigirá um esforço de reconstrução, mas estamos em condições de decidir o que queremos reconstruir e o que podemos deixar para trás. Podemos abandonar as compulsões de acumulação e extracção, como o petróleo, e adoptar tecnologias não poluentes. Podemos abandonar um modelo em que o consumo é determinado pela oferta e adoptar um onde o interesse social se sobreponha à primazia do lucro individual. Podemos adoptar um modelo em que a frugalidade, e uma certa sobriedade,tomem o lugar do consumismo. Podemos aprender com o empobrecimento da educação ea destruição do sistema de saúde, pelas normas neoliberais. Portanto, vejo condições para renovações mais igualitárias, mas é um processo incerto.”
Em algumas obras tem reflectido sobre como a imaginação colectiva de conceber outros futuros possíveis se deixou paralisar. Uma das causas estará no atrofiamento decorrente da hiperconectividade. Um excesso de comunicação com ausência de significado. Ora se existe momento em que o ecossistema digital se tornou dominante é este. “É verdade, temo-nos rendido por completo à conectividade digital, mas não é assim tão perceptível que esse cenário se venha a robustecer no futuro próximo”, contrapõe. “Pode acontecer que as pessoas venham a sentir uma espécie de náusea, o sentimento de que estamos a ir longe de mais, e reajam.”
Uma coisa é certa, a pandemia opera traduções da esfera biológica para a psicosfera, através do efeito do medo e do distanciamento. “O vírus transforma a reactividade de um corpo em relação ao outro, reformulando o inconsciente sexual”, diz, comparando o que está a acontecer hoje com contextos do passado. “Vimos esse processo sobre o inconsciente colectivo nos anos da síndrome da imunodeficiência que afectou profundamente a disponibilidade erótica e a solidariedade afectiva entre os indivíduos. Agora será que ficaremos assustados com a proximidade, inclusive a erótica, ou pelo contrário, estaremos tão cansados das trocas online, que haverá uma explosão de desejo libertador? Não sei. Mas é possível que exista uma reactividade e seja possível reinventar o afecto, o desejo, o sexo. É essa a minha esperança.”
Vimos esse tipo de efeito, este ano, noutras esferas, argumenta. O movimento #BlackLivesMatter foi para a rua, reagindo à brutalidade racista. “Existe um efeito de esgotamento”, diz, “provocado pela inoperância dos políticos e pelo estado de depressão onde vive hoje a democracia. Não sei o que irá acontecer. Mas espero que existam insurreições, não enquanto acto político, mas como activador social. Acredito nisso. Na rua, na troca, no colocar em causa símbolos de poder, no amor erótico e na insurreição. São formas de sairmos da depressão, do pânico, do medo, onde estamos imersos. Não será certamente Joe Biden a inverter o estado das coisas.” Nesse movimento, assegura, “tanto podemos redescobrir a solidariedade, abandonar o espirito de competição e sair do medo de contágio com um desejo renovado de contacto, como podemos aprofundar o sofrimento mental e o desespero generalizado, provocado por um modo de vida neoliberal do qual não nos libertamos.”
Vive-se um tempo de suspensão. Vários limites – sanitários, económicos, políticos, culturais – parecem ter sido ultrapassados e, no entanto, ao mesmo tempo parece existir uma certa imobilidade. “Não é tempo para conclusões, até porque o caos, a sensação é que tudo rápido e complexo demais para uma elaboração consciente ou emocional, é o que domina. Poderemos vir a assistir ao colapso final da ordem económica global, mas não existe uma alternativa política visível no futuro próximo. Haverá revoltas, porque o crescimento não voltará, nem o planeta o permitirá, mas não se vislumbra uma estratégia política unificadora. O que poderão surgir são redes de comunidades com alguma autonomia, ou experimentações igualitárias de sobrevivência, organizadas à margem das formas dominantes, que não dependam da acumulação, numa lógica de frugalidade, de alguma auto-produção e de redistribuição da riqueza. Apenas a igualdade pode restabelecer algo humano entre humanos.”
Para ele a crise produzida pelo vírus não será apenas económica. Será essencialmente psíquica, mental, de ausência de esperança. “Não vamos esquecer rapidamente o que está a acontecer. Estamos numa zona de transição que molda a nossa imaginação. Havia uma série de tendências catastróficas – ambientais, psíquicas e económicas – que se vinham a desenvolver há décadas e agora o vírus serviu de revelação.” Existirá orisco de nos determos num cenário onde a pandemia seja permanente?
“Claro que sim. E não sou eu que o digo. O vírus actual é apenas um dos que pode proliferar de forma contagiosa, da mesma forma que existe quem sustente de forma muito firme que a pandemia pode ser apenas o início de uma época de cataclismos ao nível ambiental e biológico. Até o efeito actual sobre o meio ambiente é paradoxal. Por um lado existiu uma redução do consumo de energias fósseis e menos poluição urbana, por outro a situação económica obriga-nos a pensar no imediato e a adiar soluções de longo-prazo, que acabam por ser também elas urgentes.”
De qualquer forma, volta a vincar, tudo pode acontecer. O que acabou não foi o futuro, mas a nossa capacidade de imaginá-lo. Estamos conectados mas paralisados, incapazes de traduzir intensões em acções. Para já, diz, precisamos de voltar a acreditar no conhecimento e uma vacina também pode ser importante nesse processo, pelo menos até certo ponto. “A minha última viagem foi a Lisboa e espero que uma vacina me permita regressar, mas obviamente que não espero que isso signifique o regresso à normalidade. Espero, isso sim, que a normalidade venha a ser conquistada pelo afecto, pelo prazer e por uma nova cultura de solidariedade e de frugalidade, em nome do que é verdadeiramente útil.”
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